Veneno de cobra gera interesse para produção de medicamentos
Imagine você esconder as pernas por 47 anos. Foi o que aconteceu com Vera Freddo. Na canela direita ela tinha uma úlcera do tamanho de um palmo. Muita gente ficava chocada quando via. A ferida não incapacitou dona Vera e, por 37 anos, ela trabalhou como dentista, mas levou uma vida limitada.
Fez 16 cirurgias e toda noite tinha que cuidar da perna. Foram mais de 17 mil curativos. Na Unidade de Pesquisa Clínica da Faculdade de Medicina de Botucatu, em São Paulo, foi onde Vera foi no segundo semestre de 2016, assim que viu na internet uma chamada pública da UNESP que convocava voluntários para um tratamento experimental de feridas crônicas. Foram três meses de aplicações do selante de fibrina.
Passados 15 meses da cicatrização, a dentista não se cabe de alegria e gratidão com a equipe que a atendeu, liderada pela dermatologista Luciana Abade. Vendo as fotos de como eram as feridas e como ficou agora, é inevitável para Vera a sensação de que o impossível aconteceu.
Veneno de cobra como solução
Essa pesquisa de ponta cujos resultados ajudaram Vera, o Globo Rural começou a acompanhar 27 anos atrás. Era novembro de 1990 quando Nelson Araújo foi até a UNESP para falar sobre o assunto pela primeira vez. A equipe, na época, havia visitado o CEVAP, o Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos.
Em quase 30 anos, muito mudou. Os protocolos científicos na UNESP se modificaram. As cobras que fazem a doação de veneno para o selante de fibrina, por exemplo, agora vivem em caixas individuais com controle de umidade e temperatura. Antes, era um cativeiro em iglu.
Tudo é feito para que o cativeiro intensivo seja o menos agressivo possível. A bióloga Luciana de Barros, uma das responsáveis pelo manejo no serpentário do CEVAP, explica que cada serpente tem uma personalidade: tem as mais tranquilas e outras mais agitadas.
Quando o Globo Rural gravou esta reportagem pela primeira vez, as cobras, na hora da extração do veneno, eram contidas pelo gancho e pelas mãos sem luvas do técnico, que mantinha a roupa do dia a dia. Algumas escapavam expondo o manipulador ao risco de um bote. Hoje, segue-se a estrita norma laboratorial. Ao conduzir a cobra, ela recebe um torpedo de CO2 para que fique semi-anestesiada para depois ter o veneno extraído.
Investimentos na pesquisa
Além das mudanças nos processos, a cola de fibrina, na época, era feita com sangue humano. Hoje, é usado sangue de búfalo, por cortesia de um produtor rural que se comoveu com o projeto.
Aristides Pavan é o empresário, que movido por uma história familiar, disponibilizou uma parte do rebanho para as pesquisas da UNESP. A mãe dele, Luiza Ravan, assim como Vera Freddo, sofria com úlceras nas pernas. Ela passou a vida inteira lidando com o problema.
Aristides diz que, de certa forma, se conforta com a possibilidade de ajudar as pessoas a evitar um sofrimento que ele acompanhou tão de perto. Por isso, ele se dispôs a fazer uma coisa que não é fácil: manter por conta um grupo de 100 cabeças de búfalos exclusivamente destinados à pesquisa. Isso é muito caro e, na maioria das vezes, impossível para instituições científicas.
Um rebanho soro produtor de búfalos fica isolado de outros animais da fazenda e se submete a rigorosos controles de sanidade para ter a certificação da ANVISA e se adequar aos protocolos médicos internacionais.
A doutora Lucilene de Lazari conta que a colaboração de Aristides trouxe um impulso importante nas pesquisas do CEVAP. O sangue do búfalo não oferece os riscos de contaminação que o sangue humano traz para a fabricação do selante.
Fonte: Globo Rural
Decom: Fabiana